sábado, 7 de novembro de 2015

Cirurgia Ortognática e ATM: qual a relação?



A história do paciente com dores faciais crônicas costuma ser típica: já peregrinou por uma uma série de consultórios, passando por profissionais de várias especialidades, sem que tenha havido consenso sobre a causa específica, e muito menos, sobre o melhor tratamento, embora a maioria indique a ATM como cerne do problema.
Por outro lado, quando o transtorno da ATM vem acompanhado de uma alteração dento-facial que requeira uma ortognática, todos apontam esse procedimento cirúrgico como a solução para todos os problemas. Será isso uma verdade? Vejamos.

Os transtornos da ATM correspondem a um conjunto de alterações dos componentes articulares têmporo-mandibulares, e/ ou músculos da mastigação. 
Estamos falando, portanto, de diferentes condições que se manifestam com sintomas semelhantes, que podem ocorrer de forma isolada ou combinada: dores faciais, ruídos articulares e limitações funcionais. Isso por si só já é um fator complicador, dificultando a compreensão da maioria dos profissionais, bem como a implantação de protocolos de tratamento.
Durante muito tempo, as dores miofasciais e transtornos da ATM foram atribuídos a alterações da oclusão dentária (mordida) . Assim as indicações terapêuticas para essa condição eram limitadas a modificações da mordida, seja com tratamentos de reabilitação com próteses, desgastes seletivos dos dentes, ortodontia e mesmo a cirurgia ortognática.
Os estudos na área foram se aprofundando, e surgiu uma corrente de pensamento que buscava dissociar quase por completo a oclusão dentária e os problemas da ATM.
Atualmente há uma posição de equilíbrio, uma vez que os estudos mais recentes demonstram que a ATM apresenta uma fisiopatologia própria, que pode incluir alterações oclusais. Sabe-se por exemplo, que condições como o bruxismo ou apertamento dentário, bem como alterações que impõem sobrecarga à ATM, podem levar a um aumento da pressão intra-articular, levando a uma isquemia (deficiência na oxigenação por déficit de circulação) dos tecidos articulares. Essa isquemia é aliviada a cada vez que há um relaxamento da musculatura. Esse ciclo de isquemia e recirculação é responsável pela produção de radicais livres que por sua vez, promovem inflamação e degeneração da ATM. Os radicais livres e mediadores inflamatórios podem ainda, degradar o ácido hialurônico, substância responsável pela lubrificação da articulação. Isso poderia gerar um maior atrito durante a movimentação do disco articular, levando à sua luxação a médio/ longo prazo.
            Na prática diária de nossa clínica, especializada em cirurgia ortognática, pudemos perceber e documentar a forte correlação entre deformidades dos maxilares  e transtornos da ATM. Dificilmente atendemos um paciente Classe II que não tenha algum grau de comprometimento da ATM, sobretudo alterações dos discos articulares. Em muitos casos, a própria disfunção da ATM é a queixa principal, que faz o paciente correr em busca da cirurgia ortognática. E é aí que entra nosso papel de dar a informação correta, bem como de indicar o melhor tratamento, prevenindo tanto frustrações do paciente com relação ao resultado, como até mesmo, a geração de um problema ainda maior.


            Se por um lado alterações da oclusão, como uma mordida em Classe II podem participar da gênese das desordens da ATM, a correção da Classe II através da cirurgia ortognática isoladamente não vai tratar o problema da ATM. Explicando melhor: é provável que anos e anos de uma mandíbula mal posicionada ou malformada tenham levado a uma situação de sobrecarga e para-função das ATMs, dando causa a alterações degenerativas. O simples fato de reposicionarmos essa mandíbula não vai fazer com que essas alterações desapareçam, regenerando os tecidos consumidos por inflamação, desgastes e remodelamentos.
            Um grupo de pesquisadores Americanos liderados pelo famoso cirurgião de Dallas, Larry Wolford, avaliou 25 pacientes com deformidade dos maxilares e deslocamento anterior de disco articular, tratados somente com cirurgia ortognática, para avanço de mandíbula. Antes da cirurgia, 36% deles tinham dor e desconforto. Em um acompanhamento de 2.2 anos após a cirurgia, 84% dos pacientes relataram dor na ATM, com um aumento proporcional a 70% na severidade da dor. E ainda, 25% deles desenvolveram mordida aberta por reabsorção condilar. Um agravo ou início nos sintomas da ATM ocorreu em um período de cerca de 14 meses após a cirurgia. 48% destes pacientes precisaram de cirurgia de ATM e repetição da cirurgia ortognática. 36% precisaram de um longo período de medicação e/ou terapia por splint e bandagem para controle da dor. Esse estudo mostra claramente o problema de se realizar somente a cirurgia ortognática em pacientes portadores de deslocamento anterior de disco. Além disso, os sintomas de recidivas ou piora só ficam claros em um período de aproximadamente um ano ou mais pós- cirurgia ortognática.
Portanto, o paciente deve ter clareza sobre o fato de que CIRURGIA ORTOGNÁTICA NÃO TRATA DESORDENS DA ATM. Quando muito, proporcionam uma posição mais fisiológica para os maxilares, diminuindo as para-funções.
Desta forma, o cirurgião deve estabelecer um protocolo sobre como lidar com os pacientes candidatos a cirurgia ortognática, que apresentam também transtornos da ATM.
A ATM com problemas requer tratamento próprio. Normalmente indicamos tratamento clínico para os casos afetados, podendo ou não haver a indicação de procedimentos na própria ATM em conjunto com a cirurgia ortognática, conforme cada caso especificamente. Esses procedimentos vão desde a artrocentese, uma lavagem da articulação por meio de agulhas percutâneas, até procedimentos por vídeo (artroscopia), e cirugias abertas. Alguns casos em que ocorreu destruição extensa das articulações, podem requerer a instalação de próteses articulares para o restabelecimento funcional.
A cirurgias modernas da ATM são realizadas por meio de incisões pequenas, de até 3 centímetros, que ficam escondidas atrás do tragus da orelha. Esses procedimentos permitem o reposicionamento e ancoragem do disco articular, sendo fundamentais para o sucesso da cirurgia ortognática a longo prazo, quando bem indicados.


Para concluir, cabe ressaltar que o conhecimento que temos hoje acerca da ATM e suas patologias, permite que o diagnóstico das condições que afetam a articulação seja feito de maneira mais precisa. Também permite que o tratamento seja indicado a partir de critérios objetivos, panorama bem diferente do observado dez anos atrás. Permanece, contudo, a característica de doença crônica e multifatorial, exigindo um tratamento continuado de múltiplas abordagens simultâneas. A cirurgia ortognática, portanto, não trata desordens da ATM. E a ATM, por sua vez, deve ser tratada para aumentar as chances de sucesso funcional da cirurgia ortognática.
Texto: Dr. Fábio Calandrini - www.fabiocalandrini.com